Um festival de cinema pode ser muitas coisas. O BEIRA quer ser desses encontros festivos onde o cinema se faz experiência de olhar e de escuta das múltiplas vidas do Brasil contemporâneo, impulsionando a expansão de ideias e novos saberes, apontando e afirmando sua vocação para mobilizar reflexão crítica, maquinar desejos e conjurar esperança. Os festivais, como o cinema, podem ser um território fértil de encontro com diferentes pensamentos e mundos. Possibilidade esta que a pequena equipe do BEIRA se agarra com mãos e coração, convidando e interpelando seu público rondoniense a reconhecer e beirar outros cinemas, aproximando-se de filmes diferentes daqueles normatizados ao qual temos acesso em centros comerciais. Os 46 filmes exibidos no BEIRA são obras que desorganizam, experimentam, encantam, provocam pensamentos e transformam o cinema.
Nesta primeira edição do festival, atravessada por aprendizagem & perseverança, trazemos uma programação que quer participar de um amplo e poderoso processo de desconstrução em curso em nosso país e no sul global, movido pelo ímpeto inadiável de descolonizar o cinema e as instituições, os olhares, ouvidos, ruas, ideias, memórias (e com isso, aos poucos, o passado e os futuros). As seis mostras compondo a programação do festival exploram o cinema brasileiro contemporâneo a partir de um olhar posicionado, que se abre da beira do Rio Madeira para os diversos cantos do país, trazendo tanto filmes realizados em terras rondonienses quanto obras que se criaram longe das nossas águas, mas que produzem imagens e pensamentos em confluência com as vidas e as lutas locais. Reunidos na composição curatorial do festival, à beira uns dos outros, os filmes se interpelam e se entrecruzam, engajando conversas poderosas entre eles. Um “maravilhoso emaranhado” emerge dos encontros entre filmes, entre um filme e o mundo, entre um filme e o lugar de onde o vemos. Dessa beira do Brasil, é possível ver, dentro e fora dos filmes, os equívocos do país e a maneira como eles são praticados aqui, vigorosamente.
“Rondônia é uma beira de guerra”, disse-nos Déba Tacana, artista visual rondoniense cuja obra “Kayary em decanto” (2021) impulsionou a arte desta primeira edição do BEIRA, em nossa primeira conversa a respeito do festival. Esta formulação certeira de Déba Tacana atravessa a programação do BEIRA — dos filmes exibidos aos debates, Marterclass e mesas de conversa. É uma consciência, compartilhada, de que pertencemos a um território minado e que é urgente aprender a fazê-lo se tornar outro. A programação convoca energias para nos aproximar, com o cinema, do poder dos ensinamentos e vozes das beiras, das florestas, dos indígenas, das populações negras, das comunidades LGBTQIAP+, dos trabalhadores e dos jovens insubmissos, conjurando para desmantelar as forças que pretendem silenciá-los.
No dia 18 de maio acontece o festejo de abertura ao vivo pelo canal YouTube do festival, um encontro em homenagem ao casal de vídeastas Pilar de Zayas Bernanos e Lídio Sohn, cuja amplitude dos filmes e legado da obra para as artes fílmicas rondonienses ainda estão para ser totalmente reconhecidos. A programação do festival estará disponível de 19 a 23 de maio neste site, os filmes são transmitidos através da plataforma EmbaúbaPlay e as atividades ao vivo — debates, conferências e mesa de conversa — acontecem pelo canal YouTube do festival, com exceção da Masterclass de Dácia Ibiapina que será em ambiente Zoom, com inscrições prévias via formulário e retransmissão para o YouTube. Todas as mostras são acompanhadas de textos em que os curadores comentam os caminhos temáticos e curatoriais de cada constelação fílmica.
O BEIRA surge do desejo de expandir as possibilidades do cinema em Rondônia e de criar, em Porto Velho, mais oportunidades para ver juntos filmes e se relacionar com eles. O festival nasce se deparando com o desafio de constituir uma comunidade de cinema no ambiente virtual, num momento em que a pandemia anuncia uma despedida e que as pessoas reencontram os espaços públicos e a alegria de estar juntos. Apostamos na possibilidade de que a vibração da vida lá fora esteja à beira do ambiente virtual do festival. A passagem entre os mundos está aberta. Boas-vindas ao Beira!
Por Naara Fontinele, Diretora Artística do Beira
1. Tomo emprestado essa bela formulação de Lina Bo Bardi e agradeço Gustavo Jardim por me colocar em contato com ela ao comentar o filme de Isaac Julien, Um maravilhoso emaranhado (2019). Em entrevista, Bo Bardi disse: “O tempo linear é uma invenção do Ocidente, o tempo não é linear, é um maravilhoso emaranhado onde, a qualquer instante, podem ser escolhidos pontos e inventadas soluções, sem começo nem fim.”
2. Retomo aqui um trecho de uma frase de Clarisse Alvarenga, ao comentar uma cena de primeiro contato em Os Arara de Andrea Tonacci: “A passagem entre os mundos está aberta, ainda que o equívoco permaneça como elemento fundante”. Em ALVARENGA, Clarisse, Da cena do contato ao inacabamento da história: Os últimos isolados (1967-1999), Corumbiara (1986-2009) e Os Arara (1980-), Salvador, Edufba, 2017, p.256.
Todas as ações têm entrada gratuita.